
Filosofia Medieval e Direito
Entrevista com Marcus Boeira
Por Guido Alt
Nesta entrevista, conversamos com o Prof. Marcus Boeira (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), acerca da sua pesquisa sobre lógica medieval e sobre autores da escolástica ibero-americana em particular. Conversamos sobre um âmbito pouco explorado de investigação da história da lógica, qual seja, a investigação lógica dos conceitos normativos ou a lógica deôntica e as suas raízes medievais. Em segundo lugar, o Prof. Marcus nos fornece um breve panorama sobre iniciativas brasileiras de investigação acerca da escolástica colonial e seus desdobramentos no continente, em particular no que tange à filosofia do direito.
In this interview we have talked with Prof. Marcus Boeira (Federal University of Rio Grande do Sul) about his research on medieval logic and on ibero-american scholasticism. We have talked about an understudied aspect of the history of logic, namely the logical investigation of normative concepts and its medieval roots. Prof. Marcus has also given us a brief panorama about Brazilian research initiatives on colonial scholasticism, in particular concerning philosophy of law.
Sobre Marcus Boeira

Marcus Paulo Rycembel Boeira é Professor de Lógica e Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Doutor e Mestre pela USP (Universidade de São Paulo). Líder do Grupo de Pesquisa CNPq Lógica Deôntica, Linguagem e Direito. Pesquisador com ênfase em Lógica modal e deôntica, lógica e linguagem na segunda escolástica ibérica e colonial. Membro da SIEPM (Société Internationale pour l’Étude de la Philosophie Médiévale) e da SBEFM (Sociedade Brasileira para o Estudo da Filosofia Medieval). Coordena um projeto de pesquisa voltado para investigação e levantamento de manuscritos de Lógica e Dialética constantes nos arquivos da Biblioteca Vaticana e no Archivio Storico da Pontificia Università Gregoriana (antiga Biblioteca do Collegio Romano). Membro permanente do Gruppo di Ricerca Filosofia Sociale (Pontificia Università Gregoriana, Roma).
A Entrevista
Guido Alt: Prof. Marcus, o seu trabalho interliga duas áreas – o Direito e a Idade Média. Quais são algumas das áreas de investigação frutífera em comum entre os dois campos?
Marcus Boeira: Uma satisfação falar à Iberica Philosophica Mediaevalia. Meu trabalho de investigação consiste em articular três pontos centrais: a lógica, a filosofia do direito e a filosofia analítica, buscando a interseção entre estas áreas, em especial no medievo, no siglo de oro e no horizonte da filosofia contemporânea. Dentro disso, a lógica modal, e algumas de suas variantes, como a lógica epistêmica, a lógica deôntica e, em conexão com esta última, a lógica jurídica e a teoria da argumentação, encontram na notável tradição da lógica medieval e da lógica barroca um conjunto extraordinário de pontos de fundamentação, o que pode ser encontrado nos tratados e nas questões enfrentadas pelos pensadores medievais, notadamente em Oxford e Paris, e também pelos escolásticos tardios na península ibérica e nas américas. A partir de então, o conjunto de pesquisas que venho realizando consiste em verificar a hipótese de que a produção teórica levada a cabo por lógicos contemporâneos, em especial no âmbito da lógica modal e deôntica, deveria atentar para o que os pensadores dos séculos precedentes produziram nestes campos, suposição que tem se confirmado não apenas no acesso a obras já editadas e consagradas, senão também em manuscritos ainda não publicados e que constituem uma aresta fundamental de nosso projeto de investigação que, tendo como sede a Faculdade de Direito da UFRGS (onde sou professor e pesquisador), particularmente o grupo de pesquisa Lógica deôntica, Linguagem e Direito por mim liderado, também é coligado com o Gruppo di Ricerca Filosofia Sociale da Pontificia Università Gregoriana em Roma, e se concentra no trabalho de coleta, leitura e, quando o caso, tradução, de manuscritos constantes no Archivio Storico da mesma Universidade e, principalmente, na Biblioteca Vaticana, acervos onde estão conservados os manuscritos em questão. Na filosofia medieval, urge um maior aprofundamento sobre as conexões implícitas entre temas de lógica terminística e aqueles que envolvem a lei, o Direito e a Justiça.
GA: Um âmbito de ênfase dos seus trabalhos é a lógica deôntica e a sua história. Você pode explicar um pouco mais como esse interesse surgiu, e quais são os antecedentes e as reflexões medievais sobre a lógica deôntica?
MB: A Lógica sempre ocupou o centro de meus interesses intelectuais e acadêmicos, sobretudo pela direta relação desta arte e ciência com o estudo da gramática latina, por sorte do trivium. Porém, o foco empreendido sobre a filosofia medieval e a filosofia do direito nos últimos 20 anos foi, pari passu, despontando ao lado de outro foco pessoal: o interesse em lógica contemporânea, particularmente a lógica deôntica. Daí, a leitura de autores como G.H. von Wright, Jaakko Hintikka e Risto Hilpinen me levaram a especular a natureza proposicional do enunciado normativo, suas propriedades semânticas e as operações lógicas involucradas nos mundos semânticos consistentes da lógica deôntica. A partir de então, pude constatar que, já na idade média, uma profícua produção especulativa em torno de temas como poder divino, lei e preceito, vontade e determinação, futuros contingentes, contingência sincrônica e modalidades condicionais abarcava muitos dos desafios presentes nas diversas teorias contemporâneas sobre a semântica deôntica e modal. Logo, parti em busca deste propósito, a saber, o de encontrar em pleno medievo uma lógica deôntica primitiva, o que foi confirmado. Manuscritos e partes de obras de autores como Roger Rosetus, Robert Holcot, Gregorio da Rimini e Thomas Bradwardine confirmaram que minha hipótese inicial era plausível. Obviamente, esta intuição é tributária à leitura que fiz e faço de grandes medievalistas e filósofos contemporâneos como os meus mestres Walter Redmond e Luis Alberto de Boni, além de Pascale Bermon, Jan Pinborg, Simo Knuuttila, Sten Ebbesen, L.M. de Rijk, Philotheus Boehner, dentre outros. Além disso, também na escolástica iberoamericana encontramos uma prodigiosa produção sobre lógica modal, futuros contingentes e propriedades de termos que, comparativamente à lógica tradicional de Aristóteles e Porfírio, aporta inúmeras contribuições para o desenvolvimento da lógica como um todo, e da lógica deôntica em particular. Em Domingo de Soto, Antonio Rubio, Alonso de Vera Cruz, Francisco Toledo, Pedro da Fonseca e outros, encontramos um tratamento rigoroso para as duas lógicas consagradas no período barroco: a lógica tradicional de Aristóteles/Porfírio/Boécio (logica antiquorum), e a Lógica de propriedades de termos, denominada lógica sumulista (logica modernorum).
GA: Outro tópico de destaque é a escolástica Latinoamericana. Embora pouco conhecida, trata-se de um período de particular importância para “preencher as lacunas” na história. Quais projetos promissores nesse campo você destacaria?
MB: A escolástica iberoamericana é um tesouro a ser descoberto. Esforços nesta direção têm crescido aqui no Rio Grande do Sul, como é o caso paradigmático do projeto Scholastica colonialis liderado pelos amigos Roberto Pich, Alfredo Culleton e Alfredo Storck, e do projeto em história do Direito liderado pelo amigo Alfredo Flores, mas também em outros lugares da América Latina, como Argentina, Bolívia, Perú, Mexico, Colômbia, e na Europa, não apenas em Espanha e Portugal por óbvias razões, mas também na Italia, na França e na Alemanha. A produção intelectual levada a cabo na Iberoamérica entre os séculos XVI e XVII é ímpar. O conjunto dos manuscritos produzidos aqui, o rigor metodológico no enfrentamento de questões de lógica, metafísica, filosofia natural e filosofia prática é notável. Iniciativas em busca de autores desconhecidos e de manuscritos ainda não editados é o que atualmente move a muitos de nós pesquisadores, que se dedicam a vasculhar este período e esta região. No caso particular da lógica terminística, o avanço e o aperfeiçoamento de muitos dos temas a ela correlatos teve no México e o Perú dois celeiros de inquestionável produção intelectual. Autores como Antonio Rubio e Alonso de Vera Cruz são indubitavelmente gênios que apresentaram a lógica terminística de um modo inteiramente original, se os compararmos com lógicos Salmanticenses como Domingo de Soto, Conimbricenses como Fonseca ou docentes do Collegio Romano como Francisco de Toledo. Atualmente, desenvolvo um projeto voltado para a análise das proposições modais nos sistemas de quantificação de predicados nas obras de alguns dos escolásticos latino-americanos do período. Meu foco está em discernir se podemos, avant la lettre, classificar a lógica modal iberoamericana como um capítulo decisivo na história da lógica modal, em virtude de seu aparato semântico sui generis e do aprofundamento alcançado pelos escolásticos do novo mundo. O projeto em questão tem gerado alguns resultados, como os livros que publiquei em 2020 e 2021, intitulados, respectivamente, “Temas de Lógica deôntica e filosofia do Direito: a linguagem normativa entre a escolástica iberoamericana e a filosofia analítica” e “Lógica Modal doxástica nos livros III e IV do Thesaurus Indicus de Diego de Avendaño”, este último um autor peruano do séc. XVII fundamental para o probabilismo, mas que foi esquecido como “lógico”, razão pela qual fui impelido a mostrar seu modelo de semântica modal para justificar posições lógico-formais em prol do probabilismo. Em suma, o trabalho de investigação proposto em todas estas iniciativas mencionadas mostra o quão difícil e insondável é o caminho para que alguém possa dominar o conjunto dos escritos que formam o Thesaurus da assim chamada filosofia iberoamericana.
©️Guido Alt | “Filosofia Medieval e Direito”, IPM Monthly 3/3 (2024).
