
Entre a lâmina do pensamento e o corpo da palavra: entrevista com Hugo Miguel Santos
Por Maria Pinho
Junho 2025 – Uma conversa com Hugo Miguel Santos, doutorando no Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa e poeta, sobre a velha relação entre poesia e Filosofia. Afinal, existirá de facto, nela, dicotomia alguma?
Sobre Hugo Miguel Santos

Hugo Miguel Santos publicou dois livros de poesia, Prelúdio e Fuga em Português Suave (Fresca, 2022) e Ballarò e Outros Motetos (Cutelo, 2024). Organizou Por Alguma Razão – Antologia de Poesia Argentina (Contracapa, 2024). E tem vindo a traduzir poemas de autores como A.E. Housman, Beppe Salvia, Idea Vilariño, Oliverio Girondo, Reynaldo Garcia Blanco e Vincenzo Cardarelli, além dos ‘Quatro Sonetos’ das Quatros Estações de Vivaldi. Estudou Filosofia na Universidade do Porto e na Universidade de Milão. Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes pela Universidade do Porto. Atualmente, é doutorando no Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa, onde se encontra a investigar as relações entre poesia moderna e ceticismo, com uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
A entrevista
Maria Pinho: A tua escrita parece servir-se do pensamento de uma forma particular — poética, mas também precisa. Como vês a antiga relação entre poesia e filosofia no teu trabalho?
Hugo Miguel Santos: Antes de mais, tendo a pensar que não existe qualquer adversativa entre os termos poética e precisão, assim como não consigo conceber de que forma a escrita se possa desvincular do pensamento. Felizmente, estes conceitos são amplos o suficiente para admitirem dentro de si concepções de poética, pensamento, e precisão muito diversas e até divergentes.
Devo ainda confessar que apesar de ter imenso apreço pela ideia de ofício, isto é, pela natureza oficinal da escrita, sinto uma profunda aversão pela ideia de emprego ou ocupação profissional. Já tive algumas profissões, claro, mas não tenho a certeza de que a poesia ou a filosofia o tenham alguma vez sido para mim, até porque não me considero filósofo, nem sequer poeta. Tais rótulos são bastante úteis, quando precisamos de denotar alguém, mas revelam-se particularmente inoperantes quando servem para nos referir a nós mesmos.
A esse propósito, gostaria de citar um excerto de uma conferência de W.H. Auden que me é muito cara, porque resume perfeitamente a minha opinião a respeito deste assunto: “aos olhos do outro, um homem é um poeta se tiver escrito um bom poema. Aos próprios olhos, só é um poeta quando está a rever pela primeira vez um novo poema. No momento anterior, era só um poeta ainda em potência; no momento seguinte, é um homem que deixou de escrever poesia, talvez para sempre”.
Preferia, portanto, referir-me à relação que a filosofia e a poesia têm com a minha vida. Sempre gostei de ler e escrever. Os poemas apareceram primeiro, antes ainda da leitura e, por conseguinte, da escrita, com as cantigas, provérbios e lengalengas da minha avó Rosa, a quem devo muito do pouco que sei sobre a prosódia da língua portuguesa. Comecei, assim, por aprender a amar a língua com os ouvidos. A filosofia veio mais tarde, sem perceber, através de um sentimento de orfandade teológica. De repente, devia ter doze ou treze anos, senti-me abandonado por Deus, sensação que permanece até hoje, e lembro-me de ter lido Assim Falava Zaratustra pouco depois. A partir daí, tornou-se claro que queria estudar filosofia. A esse respeito, devo muito ao meu pai, que sempre me incentivou a estudar e a estudar livremente.
Aliás, julgo que a minha relação com a filosofia passa por aqui: sinto-me um estudante. E com a poesia não é muito diferente. Com a vida, aliás. Não consigo conceber a poesia e a filosofia deslocadas do mundo. E não me refiro apenas à minha existência, até porque não acredito muito na utilização do possessivo, neste como noutros casos. E há um lado de errância e liberdade, mas também de prática, que eu associo à ideia de estudo e me atrai imenso.
A poesia e a filosofia são formas de vida, recordando a tão batida formulação de Wittgenstein. São práticas comunitárias, conjuntos de regras e usos, dos quais resultam objectos absolutamente único, como belíssimo fado da Amália, os ícones bizantinos, o cinema de Nanni Moretti ou os cozinhados do meu avô Jorge – é claro que nestes casos estou apenas a referir-me a exemplos de virtuosismo, mas também há casos menos interessantes. Limito-me a enumerar apenas algumas preferências pessoais.
MP: Há uma tensão histórica desde Platão: a filosofia tenta definir, a poesia perturbar. Enquanto discente de filosofia, sentiste alguma vez que escrever poesia te conduzia a trair o gesto filosófico?
Antes de mais, não estou certo de que a filosofia também não procure perturbar certos lugares-comuns ou de que a poesia não seja, tantas e tantas vezes, uma tentativa de definição. Parece-me que as diferenças fundamentais são de método: a filosofia tende a ser mais argumentativa, ao passo que a poesia, por mais meditativa que possa ou até deva ser, prescinde muito facilmente de teses e teorias.
Parece-me algo estapafúrdio, por exemplo, avaliarmos os méritos de Cesário com base nas suas ideias ou argumentos: o suposto “realismo” da sua poesia interessa-me menos do que a sua imaginação verbal e o seu domínio prodigioso do verso alexandrino. Nunca é demais repetir as palavras de Mallarmé, em resposta ao seu amigo e pintor Degas: “a poesia faz-se com palavras e não com ideias”. E poder-se-ia acrescentar, faz-se com palavras da mesma forma que a pintura se faz com tintas ou que a escultura se pode fazer com bronze ou ferro. O que não quer dizer que Turner fosse um ser desprovido de ideias, ou que Giacometti nunca tivesse ouvido falar de filosofia: era, inclusivamente, amigo íntimo de Jean-Paul Sartre, e vale sempre a pena relembrar o maravilhoso texto que Jean Genet escreveu no seu atelier.
Convém lembrar, contudo, que apesar de Platão ter sentenciado a expulsão dos poetas da cidade, estava bem mais próximo de Sófocles do que de Péricles. A sua filosofia estava assente numa forma poética: o diálogo dramático. De igual modo, ninguém tem dúvidas de que Lucrécio fosse um filósofo, apesar de escrever em verso. No entanto, julgo que Kant não terá ficado na história da filosofia por ter sido um grande prosador. Serve isto apenas para dizer que o método filosófico antecede a forma literária, e pode até prescindir das suas virtudes; mas no caso do poeta, nada mais lhe resta senão o estilo.
Ser capaz de traçar estas distinções não implica, contudo, considerar como traições as inevitáveis contaminações entre poesia e filosofia. Pelo contrário, acho que um filósofo não perde nada em ser capaz de escrever bem, tal como o poeta também beneficiará de perceber algo de moral ou epistemologia, ou de arquitectura e geologia. Só para lembrar alguns casos mais recentes, José Miguel Silva é um bom exemplo de um grande poeta que nunca deixou de ser influenciado pela filosofia política. E Joan Margarit foi arquitecto, tendo aliás publicado um maravilhoso poemário intitulado Cálculo de Estruturas.
No caso em concreto da filosofia, não posso deixar de lamentar como uma certa ausência de sentido histórico e, sobretudo, estético tem desajudado muito daquilo que hoje se intitula de “tradição analítica”, assim como um notório ensimesmamento retórico conduziu a suposta “tradição continental” – outro termo cheio de equívocos – a uma tagarelice pouco sumarenta. Aliás, torna-se até algo risível considerarmos estas correntes, com pouco mais de cem anos, como “tradições”, numa história da filosofia milenar. Mas também isto é bastante revelador da situação “actual”: muitos destes filósofos contemporâneos assumem não conhecer Aristóteles ou Descartes, até porque julgam não precisar de os ler. Neste sentido, o caso da poesia não é muito distinto: não faltam por aí “poetas” com uma história da literatura na cabeça que não tem mais de 30 ou 50 anos. Isto sim, parece-me ser uma forma de traição à poesia e à filosofia. Mas talvez já me esteja a desviar demasiado da pergunta.
MP: Muitas vezes, o teu verso serve-se de uma densidade conceptual, concomitantemente cerzindo conceitos que apresentam o ritmo de um verso. Consideras que é possível pensar poeticamente sem dissolver o aspeto crítico da filosofia?
Voltando em certa medida à minha resposta anterior, julgo que as duas actividades se podem contaminar mutuamente, sem que tal nos leve a confundir o método filosófico com a criação poética. Servindo-me dos termos da pergunta, o aspecto crítico é essencial à filosofia, já a poesia, até pode prescindir do verso, mas será sempre imagem, ritmo e movimento, na sua essência.
Queria, no entanto, deixar claro que jamais seria capaz de conceber os meus versos enquanto aplicações de conceitos, o que não implica que outros não o possam fazer. Uma poesia “conceptual”, seja lá o que isso for, terá de acreditar numa espécie de natureza essencialista da linguagem poética. Ora, nada disso me interessa. Não escrevo poemas para embalar mensagens nem teses, interessa-me antes perceber como é que a palavra “alheira” pode significar algo mais do que um simples enchido composto por carnes de aves, qundo se encontra no contexto de um poema. E quando digo “alheira”, posso também dizer “fotografia”, “bem”, “mal” ou “sublime”.
De resto, o aspecto crítico da filosofia ajuda-me a recusar na arte e na poesia qualquer forma de didactismo. Quando me vejo diante de um poema, de um quadro ou de um filme, gosto que ele me interpele directamente, sem para isso precisar de uma folha de sala ou de um qr code. Bem sei que esta posição pode soar algo anacrónica ou até reaccionária, mas não julgo que seja necessariamente o caso. Trata-se antes de um imperativo ético que me leva a não ser capaz de tratar os objectos estéticos enquanto meios, mas, sempre, como fins. E note-se que sou assumida e politicamente de esquerda e não tomo partido por qualquer forma de esteticismo, por mais que admire Walter Pater e Oscar Wilde.
Concebo a recusa de tratar a poesia enquanto “meio” de expressão de ideias e sentimentos, por mais nobres que até se possam demonstrar, como uma forma de resistência face a todas as tentativas de simplificação discursiva oriundas da propaganda publicitária que actualmente parecem vigorar no mundo e, inclusivamente, nos micro-cosmos da arte e da literatura.
MP: A tua poesia apresenta um uso contido da linguagem. Cada palavra assoma despojada e necessária. Este gesto apresenta algo de filosófico ou é puramente poético?
Infelizmente, não me sinto capaz de responder de forma robusta à pergunta. Agrada-me a ideia de contenção, claro, como se pode perceber por aquilo que já disse a respeito da ideia de precisão. Aliás, acho que a poesia deve sempre tentar ser precisa, por mais longo que seja o verso e extenso que se revele o número de estrofes. Mas julgo que sou a pessoa menos indicada para avaliar a precisão dos meus versos ou a natureza filosófica e poética dos mesmos. Além de pesporrente da minha parte, seria fatalmente incompleto.
Como já disse no texto introdutório a uma antologia que organizei, entendo que os poemas são partituras. E tal como na música, nem sempre os compositores são os melhores intérpretes das suas peças.
MP: O que pensas da velha oposição entre razão e sensibilidade, entre o conceito e a imagem? Ainda faz sentido falar ou cogitar nesses termos?
Este tipo de oposições são, antes de mais, reveladores de uma certa forma de fazer filosofia que tem uma longa tradição desde a antiguidade helénica. Se disser que se trata de binómios artificiais, com fins meramente instrumentais, não estou a dizer nada de novo, nem sequer relevante.
No entanto, importa não esquecer que esses termos já extravasaram o domínio da filosofia e que uma boa parte das pessoas se serve deles para comunicar e expressar as suas ideias, sensações e sentimentos. Assim sendo, não me sinto minimamente autorizado a dizer que já não fazem sentido, ou que perderam a sua legitimidade.
Mas filosoficamente falando, parece-me que esses binómios servem apenas para encapsular falsos problemas. Não me parecem ser muito úteis, muito menos necessários. No entanto, serviram-nos durante muito tempo e não devemos deixar de ler, por exemplo, os idealistas como Hegel ou Fichte, e muito menos Novalis e Hölderlin.
MP: María Zambrano, sobretudo na sua emblemática obra A Metáfora do Coração, pensa muito sobre a relação entre filosofia e poesia. Zambrano afirma que há uma verdade que “não se pode dizer de imediato”. Para ti, que papel a poesia desempenha na aproximação dessa verdade velada? E a filosofia?
É possível que essa verdade me esteja de tal forma velada, que não sou sequer capaz de perceber a que se refere Zambrano. Existem imensos momentos nas nossas vidas em que procuramos dizer algo e não conseguimos, mas isso não quer dizer que sejam mais ou menos verdadeiros por esse simples facto. Muitas vezes, estamos apenas mais cansados ou confusos. Enfim, são vários os motivos que podem estar por detrás de “não sermos capazes de dizer algo de imediato”.
Sinto-me muito afastado de María Zambrano, que foi uma pensadora muito interessante – e, além disso, amiga de um dos meus poetas favoritos, refiro-me a Jaime Gil de Biedma –, a partir do momento em que ela se serve do artigo definido. Não sou capaz de acreditar na existência de “uma verdade”, seja ela mais ou menos imediata. Não tenho acesso a qualquer forma de transcendentalismo e, sinceramente, não sofro muito com isso.
Os meus amigos costumam gabar-me o talento para dormir, suspeito que tal capacidade esteja fatalmente ligada ao facto de eu não ligar muito a tudo o que seja do domínio do oculto e ainda mesmo à verdade única. A vida entusiasma-me na sua infinita expansão e variedade.
MP: A filosofia alberga uma tradição de mestres e de discípulos. A poesia, nem tanto. Quem foram os teus “mestres” do pensamento e da palavra?
Não estou certo de que a filosofia seja mais dada a mestres do que a poesia. Pelo contrário, considero fundamental a noção de tradição poética, na esteira de T.S. Eliot – um dos meus poetas predilectos. No entanto, não sou capaz de dizer quais terão sido os meus mestres, porque não me sinto digno de me considerar enquanto discípulo de nenhum dos meus autores preferidos.
Retomando o título de estudante, posso dizer que gosto muito de aprender com filósofos como Aristóteles, Kant, Wittgenstein e Cavell, e escritores como Leónidas de Taranto, Dante, Camões, Tchékov, Eliot e Jorge de Sena. Talvez sejam estes os autores que mais reli.
Há ainda um caso particular, Herberto Helder, de quem me vi forçado a fugir durante muito tempo. Felizmente, agora consigo lê-lo com a distância necessária para apreciá-lo sem ficar inebriado. O HH marcou irremediavelmente a minha adolescência. Não deixa de ser curioso, por isso mesmo, que seja o Herberto pós-Servidões, o Herberto octagenário, aquele que mais me tem atraído nos últimos anos.
MP: No teu cardápio de autores existem filósofos que consideras poetas? Ou poetas que são filósofos?
Parece-me que a melhor poesia de Nietzsche está no Zaratustra, e não nos seus ditirambos, mas infelizmente não tenho o conhecimento necessário da língua alemã para ser capaz de averiguar esta minha impressão. Muitos poetas também escreveram filosofia, como Goethe e Schiller. Mas não sei se fui capaz de ir ao encontro da pergunta.
MP: Na tua experiência pessoal (como leitor, escritor, estudante de Filosofia e de Teoria da Literatura, ou pensador), existiram momentos em que a poesia te ofereceu respostas — ou perguntas — que a filosofia não alcançou? E vice-versa?
A minha experiência enquanto leitor de poesia beneficiou bastante de ter lido textos críticos e ensaios de estética que abordam questões ligadas à composição poética. E muitas vezes a correlação nem é tão directa. Mas um exemplo claro desta relação benéfica são as leituras shakespearianas de Cavell que tanto têm sido úteis para epistemólogos interessados no problema do cepticismo, como para os estudiosos de Shakespeare.
Recentemente, a leitura de um ensaio de Burke ajudou-me a encontrar algumas pistas para a interpretação de um poema de Joaquim Manuel Magalhães de que muito gosto. É impossível compartimentar ou estabelecer fronteiras entre as nossas leituras e, além disso, seria altamente entediante.
Gostaria ainda de dizer que uma das razões pelas quais gosto tanto desse poema de Magalhães se prende com o facto de não o perceber completamente, apesar de não ser um poema nada hermético. Serve isto para frisar uma vez mais como os poemas não se deixam captar por conceitos unívocos, sendo nisso, convém não esquecer, muito parecidos com as pessoas que os escrevem. É nesse sentido que a autoria importa, e não enquanto mecanismo de legitimação.
MP: Vivemos tempos saturados de discursos — políticos, técnicos, publicitários, opinativos. O que pode a poesia contra esse ruído? E a filosofia?
A esta pergunta, tal como está formulada, não tenho muito a acrescentar. Resta-me apenas fazer uma declaração de interesses: não acredito que a poesia ou a filosofia tenham qualquer missão utilitária ou salvífica. E nesse sentido não me interessa perceber se pode ou não alguma coisa contra esse ruído.
Aliás, sinto antes a responsabilidade de tentar compreender em que medida uma boa parte da poesia e da filosofia contemporêneas não passam de uma simples extensão desses discursos. Confesso que não me vejo na posse de respostas definitivas. Mas a verdade é que não faltam por aí escritores, artistas e filósofos que aderiram completamente ao ritmo da propaganda e não deixaram de ser escritores, artistas ou filósofos por causa disso. Até porque fazer poesia ou filosofia não implica necessariamente fazer algo de muito relevante. Aliás, uma generosa parte da poesia e da filosofia de todos os tempos não vale muito mais do que a pior propaganda a frigoríficos.
Além disso, convém lembrar que mesmo a melhor poesia se vê condenada actualmente ao espaço de circulação das redes. As pessoas não se limitam a partilhar Filipa Leal, Valter Hugo Mãe e José Luís Peixoto. Diariamente, são partilhados excelentes poemas em páginas de Facebook e Instagram que não perderam qualidade por estarem ali presentes. Mas pergunto-me: será aquele media adequado à leitura de um poema?
Note-se ainda como uma boa parte das editoras parecem ter aderido a este sistema de divulgação de ânimo leve e até de forma bastante consciente, por mais que se sirvam de uma pretensa máscara de oposicionistas do “sistema” vigente. Servem-se de forma empenhada e violenta desta indústria da atenção, não só para vender livros como se fossem electrodomésticos, mas também para se estabelecerem no meio enquanto agentes de poder. E repito, uma vez mais, refiro-me a editoras que até editam bons livros, e não somente aos grandes aglomerados editoriais. Como diz muitas vezes o Changuito, o grande livreiro da Poesia Incompleta e alguém a quem tenho a fortuna de poder chamar de amigo, não falta por aí muito boa gente que só é “independente” ou “alternativo” porque assim teve de ser. Não teve outra hipótese. Mas, se for sincera consigo mesmo, terá de admitir que se deixa dominar pelos mesmos sentimentos de ganância dos CEO’s das Fnac’s e pela mesma vontade de derrubar e destruir os seus opositores que sentem os famosos Trumps, Orbans e amigos. Simplesmente, acabaram por se dedicar aos livros, mas não são mais civilizados por esse motivo. Além disso, convém nunca esquecer uma das lições principais do século passado: a cultura nunca foi incompatível com a mais desprezível barbárie. Note-se que o Netanyahu não é propriamente analfabeto.
Em relação à filosofia, não faltam professores e filósofos que criaram contas e partilham vários vídeos de qualidade variável, nos quais se referem a obras e autores muitíssimo relevantes. Mas, uma vez mais, vejo-me forçado a indagar: será possível falar com um mínimo de profundidade acerca de Berkeley num reel? Tendo a responder negativamente a estas perguntas, mas nada me garante que não exista um qualquer leitor competente de Horácio ou S. Tomás de Aquino que tenha começado por aí. Duvido, mas não tenho como o negar. No entanto, parece-me que o mais provável é que tenha precisado de se libertar desse médium, para conseguir começar a estudar com o devido vagar e atenção esses autores.
Por fim, e para não me estender mais, até porque já corro o sério risco de estar também a cair na mais banal tagarelice, a única certeza que tenho a este respeito é que a poesia e a filosofia que me interessam não se interpretam, menos se explicam, num scroll de um minuto.
©️Maria Pinho | “Entre a lâmina do pensamento e o corpo da palavra”, IPM Monthly 4/6 (2025).
